Folclore: Boi-de-Reis resiste ao tempo no RN
Luz elétrica não tinha e, portanto, televisão. Era um único clarão cortando as noites: três homens, cada qual segurando uma velha lamparina acesa, metidos nuns ternos estropiados e com chapéu de couro — a cara preta que parecia carvão —, se enfiavam no meio do mato cantando, dançando e fazendo careta. Uns moços bem enfeitados, iam atrás, acompanhando o rabequeiro e os tocadores de pandeiro e triângulo que se somavam ao grupo. E tinha mais a figura de um boi sacolejante, a rodar e ir pra frente e pra trás.
Quase toda noite, aquela brincadeira que lembra uma mistura de circo, dança, teatro de rua e carnaval saía do sítio Bocas, na comunidade rural de Cuité, pertencente ao município de Pedro Velho-RN, e adentrava as comunidades naqueles rincões; ganhava a estrada e ia dar na Paraíba. O Boi-de-Reis de Cuité levava luz e alegria à toda gente ali, antes da eletricidade.
A luz elétrica chegou e ofuscou o brilho do Boi. E depois da TV, ele nunca mais foi o mesmo. A tradição não acabou, mas a brincadeira espontânea não tem mais. O grupo se apresenta, geralmente, em eventos de cultura popular. O Boi-de-Reis de Cuité sobrevive há quatro gerações em duas famílias de agricultores de Pedro Velho, os Joaquim e os Marreiro. Já tem neto e bisneto dos primeiros participantes brincando.
Como a tradição não permite mulher, a dona-de-casa Elina Soares da Silva, 57, apenas assiste e incentiva o marido Arlindo Marreiro da Silva, 59, e os filhos Aristelson (20) e Adivan (19) para que eles não deixem a brincadeira morrer. “Teve um tempo que parou. Os mais antigos foram se acabando e não tinha ninguém pra dar continuidade”, lembra.
Aos 90 anos e doente, Geraldo Marreiro, pai de Arlindo e Mestre do Boi-de-Reis de Cuité, se aposentou mas deixou a coisa encaminhada. “Ele deve ter visto a brincadeira por aí. Aprendeu e ensinou tudo a gente”, fala Arlindo, que começou a brincar o boi ainda menino, como dama. Depois passou a galante e hoje é o mascarado Mateus. Metido num terno roto, descalço e com a cara pintada de preto, é o vaqueiro que vai pegar o boi. A lamparina acesa remete à época em que não havia luz elétrica. O folguedo, dizem os estudiosos, tem origem no Nordeste do século 18, associado à criação de gado. Como o nome, a formação varia de acordo com o lugar.
O de Cuité é composto de três mascarados e oito enfeitados — seis galantes e duas damas. E tem ainda os três homens da bandinha (o rabequeiro e os tocadores de pandeiro e triângulo), além das figuras. O Boi de Cuité é considerado um dos mais originais do Brasil. Daí, sua grande importância.
Mas a sobrevivência do grupo não é fácil não. Viver da brincadeira, ninguém vive. Os cachês que os participantes ganham dão apenas para renovar o figurino. Em 2006, o Boi-de-Reis de Cuité foi bater em São Paulo. As apresentações renderam o maior cachê da história do grupo: R$ 3 mil para dividir entre 15 pessoas.
Mestre: Boa noite minhas senhoras/ e meus senhores também/ sou o mestre da brincadeira/ que todo ano aqui vem/ para brincar o reisado/ todo bonito enfeitado/ Viva Jesus em Belém.
Mateus: Boa noite para todos/ nessa noite tão singela/ Viva a honra dessa casa/ Os Santos Reis no seu dia/ Viva a nossa brincadeira/ e viva a família inteira/ Jesus, José e Maria.
Birico: Boa noite para todos/ nessa noite tão singela/ Nem todo cavalo esquipa/ nem toda moça é donzela.
Mestre: Mas, que é isso, Birico? Fale com o povo direito.
Morte e ressurreição do Boi de Cuité
A chama da lamparina apagou por uns anos. O Boi-de-Reis de Cuité arquejava, mirava o olhar na direção dos “enfeitados” e via apenas umas figuras pálidas e turvas serem engolidas pelo mais completo breu. Parecia que não ia ter jeito mesmo não.
Ainda que houvesse figurino, não tinha quase mais gente pra brincar. A tradição estava praticamente morta em 1997, ano em que o município de Pedro Velho realizou o I Encontro de Artes, Cultura e Humanidades.
Veio daí o sopro que fez a chama da velha lamparina começar a reviver. O professor de Geografia João Hortêncio, coordenador de Cultura e Meio Ambiente em Pedro Velho, lembra hoje que por ocasião do evento “foi feito um trabalho de resgate do que estava perdido na cidade”.
De fora da comunidade, chegou um senhor franzino e paciente — o pesquisador de cultura popular Deífilo Gurgel — que exaltou a originalidade do Boi de Reis de Cuité, colocando-o como um dos mais importantes do Brasil. A chama cresceu um pouco mais.
No ano seguinte, um careca de óculos, de lugar ainda mais distante, pisou na terra do coquista Chico Antônio para conhecer o boi e difundi-lo além do Rio Grande do Norte. O antropólogo Hermano Vianna, irmão do roqueiro Herbert Vianna, documentou o grupo folclórico de Cuité para o projeto multimídia Música do Brasil.
Junto com o Boi Mamão de Santa Catarina, o Cavalo Marinho de Pernambuco, o Boi Bumbá do Pará e o Bumba-meu-Boi do Maranhão, o Boi-de-Reis de Cuité/Pedro Velho ganhou o mundo por meio de livro, site e documentário em fita VHS (ainda não existia DVD).
Era o que faltava para a lamparina lampejar e o boi voltar a ficar de pé. Não é como nos tempos de antigamente, quando não tinha luz elétrica, mas a tradição vive. E que siga adiante.
A história do rabequeiro Damião
Viva o menino Damião e sua traquinice! Não fosse pela teimosia do danado do menino, sabe-se lá o que seria hoje do Boi-de-Reis de Cuité. Muito antigamente, depois de brincar no boi, Damião ficava com as butucas bem arregaladas, só espiando o rabequeiro do grupo pra saber aonde ele ia entocar o diacho da rabeca.
O tocador escondia o instrumento pra que ninguém bulisse, mas o menino ia e metia a mão. A rabeca ficava escorada num pé de parede. Quando o dono escutava o som e ia atrás, esbaforido, o menino já tinha “arranhado” o instrumento um bocado e desatado a correr e pinotar no meio do mundo.
Um dia o rabequeiro morreu. Damião estava rapaz e já mandava um forró pé-de-serra danado na rabeca. Canhoto, aprendeu a tocar o instrumento com as cordas invertidas (as de cima em baixo e as de baixo em cima). E disso se gaba até hoje.
Essa é a história de como Damião Soares de Lima, 66, virou rabequeiro do Boi-de-Reis de Cuité e ajudou a manter de pé uma tradição. Se não acredita, vai lá na comunidade, a 4,5 km do centro da cidade de Pedro Velho, bem no rabo do elefante, e pergunta pro pessoal.
O próprio Damião vai contar tudinho com muito prazer. E vai falar ainda mais. Ele dirá, por exemplo, que anda preocupado com o futuro do Boi-de-Reis de Cuité.
“Antigamente, eu tinha que ir escondido pegar a rabeca, porque o tocador não deixava. Hoje, procuro e não acho sequer um menino interessado em aprender o instrumento.”
O boi, segundo Cascudo
“Boi Calemba, Bumba (Recife), Boi de Reis, Boi Bumbá (Maranhão, Pará, Amazonas), Três Pedaços (Porto da Rua, Porto de Pedras), em Alagoas, Folguedo-do-Boi em Cabo Frio, Estado do Rio de Janeiro (Macedo Soares), sendo a primeira denominação a mais vulgar e geograficamente conhecida. Bumba é interjeição, “zás”, valendo a impressão de choque, batida, pancada. Bumba-meu-Boi será “Bate! Chifra, meu boi!”, voz de excitação repetida nos cântigos do auto, o mais popular compreendido e amado do Nordeste, o “folguedo brasileiro de maior significação estilística e social”, para Renato Almeida.
Exibe-se dos meados de novembro à noite de Reis, 6 de janeiro, pertencendo ao ciclo do Natal e sua presença no carnaval é reprovada pelos tradicionalistas. Apresenta-se em terreiro livre, campo aberto, não demandando tablado e atendendo aos convites para residências particulares. A mais antiga menção é a de Padre Miguel do Sacramento Lopes (1791-1852), constituído já com figuras, bailados e enredo. Datará das últimas décadas do século XIII e seu ambiente foi o litoral, engenhos de açúcar e fazendas de gado, irradiando-se pelo interior (...)”
Folclore vivo - Documentários vão virar livro e dvd
O acesso ao sítio Bocas, na comunidade de Cuité, se dá por uma estrada de barro. Depois de 4,5 km — a partir do centro de Pedro Velho — paramos ao lado de uma casa amarela bem simples onde o pessoal se aprontava para a apresentação. O Boi-de-Reis de Cuité foi o segundo grupo visitado pela TN junto com a Comissão Norte-Rio-Grandense de Folclore para o projeto de documentação Folclore Vivo, iniciado neste ano com apoio da Fundação José Augusto.
As viagens pelo interior do RN começaram por Barra de Cunhaú. Estivemos lá em fevereiro para documentar a Chegança. Dizem os pesquisadores tratar-se do único grupo no Brasil que preserva as características originais desse auto que representa a luta entre mouros e portugueses. O projeto Folclore Vivo, segundo o seu coordenador, o pesquisador de cultura popular Severino Vicente, vai gerar um livro e um DVD — uma emissora de TV local também está documentando as manifestações.
Saiba mais
1) Boi itinerante - Além do documentário feito por Hermano Vianna, há um outro registro do Boi de Reis de Cuité. Na década de 90, o professor de Geografia João Hortêncio, coordenador de Cultura e Meio Ambiente em Pedro Velho, pegou uma câmera e saiu atrás do Boi, registrando a brincadeira em 13 pontos distintos da comunidade. Deu o nome de “O Espetáculo Itinerante do Boi-de-Reis de Cuité”.
2) Terra rica - Pedro Velho é terra fértil em matéria de cultura popular. Lá nasceu o coquista Chico Antônio (1904 - 1993). Cantando cocos acompanhado do seu ganzá, o autor de “Boi Tungão” deixou boquiaberto Mário de Andrade, na passagem do modernista pelo RN em 1929.
3) A festa - É uma espécie de ópera popular, cujo conteúdo varia entre os inúmeros grupos de bumba-meu-boi existentes, mas, basicamente, desenvolve-se em torno da lenda do fazendeiro que tinha um boi de raça, muito bonito, e querido por todos e que, inclusive sabia dançar.
4 ) Estrutura e formação - O RN é onde o Boi se apresenta com a formação mais simples. O elenco é formado pelo Mestre, os vaqueiros Mateus e Birico, Catirina, os galantes e as damas. Depois vêm as figuras do Boi, o gigante e o Jaraguá. O espetáculo se resume a cantos e bailados interpretados pelos galantes, as piadas e as loas ditas por Mateus e Birico, e a apresentação das figuras.
Fonte: Tribuna do Norte
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